Sem título #5
"distraída com o trabalho; e se pôs a cantar: Da doçura dos teus olhos, a brisa inveja já tem…”
20h30 O bebê dormiu, vou escrever o periódico da semana.
20h32 Preciso só guardar esses brinquedos antes, chega de bagunça.
20h39 Vou colocar a roupa pra bater, aproveitar a máquina. Ixi, tem roupa pra estender e mais pra recolher.
21h04 Agora que já recolhi, guardei e coloquei outra leva pra bater, vou só tirar a mesa e já escrevo.
21h15 Vou lavar essa loucinha pra acordar com a pia limpa, aí já vou escrever.
21h36 Tô ouvindo ele chorar, vou só ninar de novo e já escrevo o periódico.
22h00 Deixa só eu escrever o cardápio da semana e já vou pro periódico.
22h23 Quer saber? Deixa eu aproveitar e tomar um banho antes de sentar pra escrever.
22h34 Nossa, tenho que deixar o mingau da madrugada pronto (meu filho não pegou na mamadeira, come uma tigela de mingau de aveia às 4h30 da manhã).
22h42 Ixi, ele chorou de novo, já já começo.
23h05 Aí que sono, já está tarde. Amanhã escrevo.
E é assim que eu atraso os periódicos.
***
Sou meio metódica. O suficiente pra ser chatinha, não o bastante pra irritar os outros. Troco meu filho com os itens sempre na mesma ordem, organizo a louça antes de lavar, lavo as roupas por categoria e cores e tecidos, releio os parágrafos que escrevo tantas vezes que alguns chego a saber de cor. Não exijo o mesmo de ninguém, mesmo que venham a me substituir nas tarefas. Quando eu vou fazer, prefiro do meu jeito.
Uma coisa que me pega são eventos semanais. Na minha cabeça, o envio do periódico TEM DE ser na sexta (igual lavar os lençóis é no domingo e as toalhas, na quarta). Caso eu não consiga escrever na quinta ou na sexta de madrugada, prefiro não enviar do que trocar de dia. Faço um mal uso danado do meu livre arbítrio, ainda mais pensando que são coisas que só dizem respeito a mim.
Às vezes, me imponho tantas regras, que esqueço que as coisas podem ser feitas de outra maneira, que eu tenho liberdade pra mudar. Essas ordens vindas de mim mesma por vezes pioram muito as coisas, fazendo com que eu procrastine só porque terei de colocar a regra (auto imposta) em prática.
Tenho que fazer um lembrete (com a minha caneta zebra 0.5 preta numa nota adesiva amarela pra colar no lado esquerdo da geladeira) que sou livre. Quer saber? Deixa pra lá.
***
Rambo II parece ter sido escrito a partir de “Technopoly” do Neil Postman. O que não pode ser verdade, porque o livro foi publicado apenas em 92, enquanto o filme estreou em 85.
Gosto muito dos filmes do Stallone. “Rocky” (o 1 e o 2) figuram entre meus filmes favoritos da vida. O que mais me apetece são seus personagens que cativam ao máximo mesmo mal falando 10 vezes durante o roteiro todo.
Já na primeira cena, o coronel diz “O computador selecionou você entre três…”. A gente tem também o burocrata do Murdock que é o puro suco de Tecnopólio com seu apego ao sistema, à tecnologia, à papelada. É engraçado ver o Rambo, que no filme 1 era chamado de “máquina de matar”, batendo boca com ele e afirmando que a melhor tecnologia é a mente.
Bem, minha cena favorita é certamente quando o Rambo sem camisa (não teria o mesmo efeito se ele estivesse vestido), atira nos computadores e na papelada da base. Gostaria de fazer o mesmo toda vez que tenho que agendar algo no “Poupatempo”.
(Para assistir em melhor qualidade, o filme está disponível no PrimeVideo).
***
Detesto áudios desnecessários. Por que ao invés de enviar um áudio de 3 segundos dizendo “sim” a pessoa não escreve? Tenho que “dar o play” 3 vezes até ajustar o volume pra ouvir uma palavra que poderia ter sido escrita. Destesto o WhatsApp.
***
João: Não acredito que você queria e não me falou.
Letícia: Não falei porque você estava com cara de quem não estava a fim, preferi dormir.
João: Você tem que entender que eu SEMPRE estou a fim, não gosto desses charminhos.
Letícia: Se não tiver o charme não tem graça, eu não seria mulher.
João: Daqui a 40 anos eu estarei vivendo uma ESPIRITUALIDADE MÍSTICA e serei eu quem vai falar não, daí eu quero ver o que você vai fazer.
Letícia: Direi “tá bem” e vou fazer crochê.
***
Com meus estudos e leituras para a série sobre Tecnologia, não consigo parar de pensar nisso. Vejo os temas em tudo (até porque realmente estão). Meu marido está me chamando de “Tecnotícia”, acho que tenho que moderar Postman e companhia nas conversas.
Começo a observar qualquer que seja o comportamento humano e tento traçar o quanto ele se transformou através do tempo por conta das tecnologias que surgiram. Um que não me sai da cabeça é o ato de lavar as roupas. Na Antiguidade (e até a popularização da água encanada) lavar as roupas era uma atividade coletiva feminina. As mulheres se retiravam num mesmo horário, com seus montantes de roupas e bacias, para as margens de um rio e lá passavam horas esfregando, enxaguando, torcendo e estendendo as vestes de suas famílias.
Assim que o encanamento se democratizou, o tanque isolou as mulheres cada uma a seu respectivo quintal. E ali, ao invés da companhia das vizinhas e parentas, ela tinha junto a si seus pensamentos, devaneios e cantigas.
“[…] no tanque da casa, um tanto escondida dele, uma rapariga preta lavava. Ela abaixava o corpo sobre a roupa, carregava todo o seu peso, ensaboava-a ligeira, batia-a de encontro à pedra, e recomeçava. A rapariga não o viu, distraída com o trabalho; e se pôs a cantar: Da doçura dos teus olhos, a brisa inveja já tem…”
Triste Fim de Policarpo Quaresma
Não são em poucas obras que a imagem da mãe próxima ao tanque com a criança a brincar em meio às bacias é ilustrada. Lembro de boas cenas em “A menina sem estrela” e em “O menino no espelho”.
O tanque ainda existe, mas hoje ou é para a pré-lavagem de “encardidos” que depois vão pro ciclo pesado da máquina de lavar, ou para deixar “de molho” alguns trapos, que ficam por tanto tempo nos baldes que até mofam.
Não digo que não ganhamos com a máquina de lavar. Temos tempo pra fazer outras coisas enquanto as brastemps lavam, torcem, enxáguam e até reutilizam a água de nossas roupas. Mas minha lavanderia é tão pequena que a relação entre meu filho e o tanque se resumem a ele bater a cabeça na pia, nada de brincadeiras no quintal enquanto eu rememoro um poema ou cantarolo uma valsa.
Às vezes, penso em trocar a “lava & seca” por algumas esfregadas e estendidas ao ar livre enquanto minhas crias correm no quintal.
***
Favoritos da quinzena do tempo que fiquei sem escrever
Leituras
Amousing Ourselves to Death (Neil Postman)
O Viés da Comunicação (Harold A Innis)
Memórias de um caçador (Ivan Turguêniev)
Música
Redondo Beach (Patti Smith)
Filmes
Rambo I
Rambo II
Textos
Homem: a ponte entre os céus e a terra (Beatriz Etchichury)
As Faculdades da Alma e a Tecnologia (Pedro Sette-Câmara)
165. TV aberta; crítica; expletivos; dias de luta; Enéas; Azevedos; Moóca; gaita; Wolfgang; jogos olímpicos; esportes de mocinhas; cancelamentos (Orlando Tosetto)
Novidade velha (Juliana Amato)
***
Agradeço a leitura. Nos vemos no próximo periódico, para darmos continuidade à Tecnologia com o surgimento da escrita, até mais!



Você é alquimista? Tudo que você escreve vira ouro...
Amo-te cada dia mais! Se que é possível isso kkk